Tecendo Memórias - Deslocamentos do MEA 2024
Por Estêvão da Fontoura, curador da exposição itinerante.
O Memorial da Evolução Agrícola é uma instituição museal situada em Horizontina, noroeste do estado do Rio Grande do Sul, voltada para a exibição da memória do desenvolvimento tecnológico associado aos processos da agricultura como atividade econômica de essencial valor para a população brasileira. Além de uma exposição permanente que narra esta história de forma envolvente, didática e artística, utilizando tecnologia de ponta para tal, o MEA oferece também atividades esportivas e culturais, como oficinas de música e dança, entre outras.
Cultura é um conceito bastante amplo, mas uma de suas definições mais simples é a de que seja algo que recebeu a intervenção humana. Um exemplo disso é uma goiabeira, que lá no meio do mato é natural, parte da natureza, já no quintal de uma casa, ou em um pomar, é cultivo, é cultura. A agricultura, cujo surgimento, junto com a escrita, deu início ao período Neolítico, há 12.000 anos, trouxe também a divisão do trabalho e a vida em sociedade. Conhecemos essa história por ter sido contada pelos nossos ancestrais a partir de pinturas feitas na pedra, que permanecem preservadas até os dias atuais, como um mecanismo temporal. Tais pinturas se desenvolveram como a primeira forma de escrita, baseada em símbolos que representam significados que ainda podemos compreender, pois guardam semelhanças com nosso modo de vida: o plantio, o manejo de animais, a vida coletiva em danças e celebrações em volta da fogueira, o cuidado com as crianças.
Nesta vida coletiva, os pequenos municípios nos interiores do Brasil não são tão diferentes das cidades, se olharmos para certas experiências cotidianas que são comuns a qualquer pessoa. Todos possuem ruas, sejam de chão batido, paralelepípedos ou asfaltadas, calçadas, placas, casas, prédios, praças, árvores, postos de saúde, escolas, farmácias, igrejas, bancos, bares, mercados, agência dos Correios e prefeitura. Tais elementos arquitetônicos possuem outras características que compõe a experiência cotidiana de quem viva ou tenha vivido em um município, seja ele rural ou urbano, como telhas, tijolos, muros, cercas, antenas, chaminés, portas, janelas, postes, etc. Além disso, a paisagem sonora de uma localidade para outra pode variar, mas certamente muitos sons são comuns a todo município, como o ruído de motores de carros, motos e caminhões, ou dos pneus tracionando sobre o pavimento, buzinas, cantos de pássaros diversos, vento, chuva, trovões, conversas, toques de telefone, ruídos de construções ou de programas de rádio e televisão, entre outros.
Na arte contemporânea, que além de ser a arte dos dias atuais é também uma arte mais diversa e inclusiva, artistas têm se apropriado deste imaginário coletivo comum da cidade para produzirem obras que dialoguem com o público em geral, e não apenas com o público interessado em arte, que decide entrar em um museu ou galeria. Após movimentos como o Dadaísmo, na segunda década do século XX, que popularizou o uso de objetos feitos industrialmente, ou a Arte Conceitual, que nos anos 1960 evidenciou a prevalência da ideia ou conceito sobre o produto final de uma obra de arte, o caminho para um fazer artístico conectado com o dia-a-dia estava pavimentado. Como destaca a autora Lucia Santaella (Paulus, 2005), essa aproximação da arte com o cotidiano urbano gerou também uma aproximação com os meios de comunicação. Em Porto Alegre, nos anos 1970, artistas como o grupo KVHR exploravam as possibilidades abertas pela Arte Postal, que propunha a utilização do sistema dos Correios para o compartilhamento de obras de arte no formato “carta”, contendo mensagens textuais, carimbos, desenhos, gravuras, colagens e tudo o que uma carta poderia transportar, até mesmo cheiros. No momento artístico atual, operações simples, como o deslocamento de um objeto ou situação do seu contexto original, podem resultar em significativas mudanças na percepção de quem observa. Um paninho de limpeza, muito comum na casa de todas as pessoas, utilizado como suporte para uma impressão em serigrafia, presente numa exposição de arte, adquire outro significado.
Neste contexto, a exposição Deslocamentos MEA flui por seis municípios próximos a Horizontina, integrando-se temporariamente à rotina local, ao mesmo tempo em que cria um espaço acolhedor com a instalação de um ambiente voltado para o contato com a memória e com a arte, unindo passado e presente para olhar para o futuro. Pares de óculos de Realidade Virtual permitirão uma experiência imersiva na exposição permanente do MEA em quatro dimensões: altura, largura, profundidade e tempo. Um exemplar da Teoria da Relatividade de Einstein, publicada em 1905, ao lado de uma antiga câmera de cinema, insinua que arte e ciência estejam mais próximas da nossa vida do que costumamos admitir.
A medida que as obras e elementos deste ambiente vão se desdobrando diante do público, camadas de tempo e de significados surgem para mobilizar afetos. Num aparelho de rádio antigo pode-se acompanhar a transmissão de um programa onde histórias da região são contadas por moradores. Um televisor apresenta uma mostra de vídeos experimentais de cinco artistas que vivem no Rio Grande do Sul. Tecnologias dos séculos XIX, XX e XXI lado a lado, coexistindo da mesma forma que coexistem no mundo, a serviço da comunicação, da informação, da arte e da memória. Como um mecanismo temporal, esta exposição nos desloca sem que saiamos do lugar. Tecnologias ancestrais e contemporâneas seguem tendo relevância e comunicam, de formas distintas, sobre como chegamos até aqui.
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