A agricultura brasileira como identidade cultural
Muito da sociedade como conhecemos hoje existe devido à evolução agrícola. A forma de organização em lugares fixos ao invés de uma vida nômade, o comércio da produção excedente, que deu início aos primeiros mercados e até a capacidade de abastecer com alimentos um grande contingente populacional em perímetros urbanos… Tudo isso impactou e impacta nos modos como vivemos e como construímos a nossa identidade até hoje.
Assim, a história da agricultura é, em certa medida, a história de todos nós e ainda mais diretamente daqueles que lidam com a terra. É inegável que existem identidades profundamente ligadas ao campo. Milhares de homens e mulheres se constituem enquanto pessoas e cidadãs nesses ambientes, com hábitos e estéticas próprias, fazendo uso de um conjunto de símbolos que caracterizam e delimitam um determinado grupo social, gerando pertencimento a ele.
Para o sociólogo Muniz Sodré, “[...] identidade humana é um complexo relacional que liga o sujeito a um quadro contínuo de referências, constituído pela intersecção de sua história individual com a do grupo em que vive. Cada sujeito singular é parte de uma continuidade histórico-social, afetado pela integração num contexto global de carências (naturais, psicossociais) e de relações com os outros indivíduos, vivos e mortos.”
Ao falar de identidade, é preciso ter cautela, pois não existe homogeneidade. Em um estrato específico, podem existir diversas “subdivisões”. Ainda, uma identidade pode se transformar ao longo dos anos, tendo em vista que a cultura é dinâmica e viva, gerando identidades culturais híbridas, como sugere Stuar Hall na obra “A identidade cultural na pós-modernidade”.
Um exemplo é a agricultura familiar. Como pontua Ricardo Everton Lima no artigo Agricultura familiar e identidade cultural: um estudo teórico: “Assim, pode-se inferir que a contínua prática da atividade agrícola entre diferentes gerações familiares propicia um sentimento de pertencimento ao local e a construção de identidade voltada à mesma prática”. Neste caso, geralmente pode-se perceber uma forte influência do campesinato e uma ligação mais próxima com a terra, uma vez que a maior parte da mão de obra nesse tipo de propriedade faz parte do núcleo familiar dos proprietários.
Outro exemplo de identidade ligada ao mundo rural são os chamados “agroboys” ou “agrogirls”, jovens representantes de um mundo agrícola em profunda interação com os modos de vidas urbanos. No artigo Juventudes entre o rural e o urbano: o caso dos agroboys e agrogirls de Bela Vista de Goiás, de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Goiás, os autores salientam “A importância de frisar que diversos estereótipos, estigmas e preconceitos permeiam a caracterização dos jovens rurais no Brasil contemporâneo, o que acarreta várias questões, como sua permanência no campo e a busca por um futuro sem as atribuições de adjetivos pejorativos [...]".
Assim, refletem, tem-se uma nova construção social da juventude caipira sobre os aspectos culturais do padrão country, o que os leva a vivências de um modo de ser e de se identificar como agroboy/agrogirl. Isso quer dizer, pessoas ligadas ao trabalho com a terra, mas com uma roupagem, ou personalidade, fortemente atravessada por uma cultura estadunidense (como as próprias nomenclaturas propõem), industrializada e tecnológica - o que fica evidente em aspectos culturais como estilo musical sertanejo universitário.
Poderíamos citar diversas outras identidades culturais ligadas à agricultura: os povos originários e sua relação sagrada com a terra, as muitas comunidades quilombolas, os grupos de produtores orgânicos, que possuem demandas e formas de cultivo próprios, e até a classe de grandes latifundiários, por exemplo. O fato é que plantar e colher é um ritual ancestral, capaz de gerar diversos acontecimentos sociais e engendrar múltiplas formas de ser.
Foto: Mulheres agricultoras realizam a 7ª Marcha das Margaridas, em 2023. O evento, realizado a cada quatro anos, leva para a capital federal as pautas políticas das mulheres do campo, da floresta, das águas e das cidades.
Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil.
Fontes:
Embrapa. Trajetória Da Agricultura Brasileira. Disponível em: https://www.embrapa.br/en/visao/trajetoria-da-agricultura-brasileira
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
Lamas Fernando Mendes. Artigo - 20 de Março: Dia Mundial da Agricultura. Disponível em: https://www.embrapa.br/en/busca-de-noticias/-/noticia/79186267/artigo---20-de-marco-dia-mundial-da-agricultura
LIMA, Ricardo Everton. Agricultura familiar e identidade cultural: um estudo teórico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13, pp. 31-42, jan-abril de 2021.Submissão em: 11/05/2020. Aceito em: 04/03/2021.ISSN: 2316-854. Disponível em: https://periodicos.uff.br/ensaios_posgeo/article/view/42651/29051
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999
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